Deserto de almas

Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra... mas desde o princípio alguma coisa - fados, astros, sinas, quem saberá? - conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois... para nao sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, se querer justifica-los - ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem?

28.3.07

Historia Verídica

A un señor se le caen al suelo los anteojos, que hacen un ruido terrible al chocar con las baldosas. El señor se agacha afligidísimo porque los cristales de anteojos cuestan muy caro, pero descubre con asombro que por milagro no se le han roto.

Ahora este señor se siente profundamente agradecido, y comprende que lo ocurrido vale por una advertencia amistosa, de modo que se encamina a una casa de óptica y adquiere en seguida un estuche de cuero almohadillado doble protección, a fin de curarse en salud.

Una hora más tarde se le cae el estuche, y al agacharse sin mayor inquietud descubre que los anteojos se han hecho polvo. A este señor le lleva un rato comprender que los designios de la Providencia son inescrutables, y que en realidad el milagro ha ocurrido ahora.

(Julio Cortázar)

15.3.07

Triz



Me debrucei no calabouço que cavei sozinha
Caí e lá permancei muda
porque sim
surda, cega, ferida por um quase de
365 noites

Então, de uma brecha miúda,
Ouvi duas vozes que foram adentrando
sorrateiras
e foi indo o fim da penumbra
O luto dissipado

Mesmo com frio nos ossos e a alma dura
Os colos me levaram para o lado de cá
ah um de quentura tão familiar
E a outra mirada funda e determinada

E toda sede se foi com a fonte de vida
do rosto de sombra
do semblante de anjo

Amo a antiga sedução desgarrada, que me pertence há anos.
Amo a entrega última e sua verdade atestada, seus vincos, a luta, a doçura do desconhecido.

Paz idílica, impalpável

Hoje não dói mais.
Mesmo o amanhã turvo, é o que desejo.
Contanto que os traga agora
para meu futuro em gestação.

Me levem para os seus mundos seus umbigos seus melindres
quero o sorriso de acolhida
quero o mundo de magia
Tecer promessas vãs com todo o amor de já.

Quero permancer feliz
neste meio tempo tão fugaz
por um triz
quase caio
para um lado
para o outro


Nós, um quase
Mas a paz, a temos



29.1.07

os dragões não conhecem o paraíso


os dragões não conhecem o paraíso:

[ou: ponderem] caio fernando abreu


"Por ver com muita clareza as coisas e os efeitos, ele completa, no tempo certo, as seis etapas e sobe no momento adequado rumo aos céus, como que conduzido por seis dragões". (Chíen, o Criativo: I Ching, o Livro das Mutações)


Tenho um dragão que mora comigo.

Não, isso não é verdade.

Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço - seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma como precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.

Isso me pareceu grandiloqüente e sábio como uma idéia que não fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente indecifrável - lucidez daquele dia.

Estou me confundindo, estou me dispersando.

O guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais tarde. Todas essas coisas de que falo agora - as particularidades dos dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreende-lo. Cada vez menos para que minha compreensão fosse sedutora a ponto de convence-lo a voltar, e cada vez mais para que essa compreensão ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito, enumero proposições como : a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo.

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ou ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada. Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentada no colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de dragões. Consegui evita-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais como uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim, que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta de uma agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para transformar-se numa grande chaga.

Assim, agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre os dedos da mão direita, pairando sobre a palma aberta da mão esquerda. Algumas anotações em volta, tomadas há muito tempo, o guardanapo de papel do bar, com aquelas palavras sábias que não parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não consigo ou não quero ou finjo não poder decifrar.

Ainda não comecei.

Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo.

Mas preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história. Principalmente se for uma história de dragões. Gosto de dizer tenho um dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um dragão jamais pertence a nem mora com alguém. Seja uma pessoa banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como uma gueixa. apenas, eles não dividem seus hábitos.

Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer horário, as três da tarde ou as onze da noite, já que o dia e a noite deles acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se estivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.

Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos - adapta-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender, querido, os vizinhos banais do andar de baixo já reclamaram da sua cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso, quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo seu fogo. E, quando você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira cinzas na minha cabeceira.

Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade, jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, na tarde ou na noite seguintes, quando ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre as cinzas. Cinzas são como seda para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembram destruição e morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.

Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar - você ainda tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele estaria impassível quando perguntasse assim: mas então você só acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante: "Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível". Ele gostava tanto dessas palavras começadas por in - invisível, inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às vezes em trata-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para tentar requintadas harmonias. Ele cheirava a hortelã, a alecrim. Eu acreditava na sua existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou a cachorros das ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe morto e maresia - nunca foi esse o cheiro dos dragões.

A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos, aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê devia sonhar com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês costumam esquecer dessas coisas quando deixam de ser bebês, embora possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos muito largos conseguem.

Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de olhos-azuis-inocentes e seu bebê, eu também tinha olhos-azuis-inocentes. O bebê olhou o tempo todo para mim. Depois estendeu as mãos para o um lado esquerdo, onde estava o dragão. Os dragões para sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões - dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas só às vezes, sabem transmitir.

Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quando lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e o avesso parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e o direito. Mas queria falar antes do cheiro. Havia outros sinais, já disse. Vagos, todos eles.

Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber por que, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e cachos de uvas reluzentes e berinjelas luzidias (os dragões, descobri depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas, para que o espaço ficasse mais bonito.

Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer. Sentava na sala todas arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas, cestas de frutas, vasos de flores - acendia um cigarro e ficava mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro, olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todos numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã, começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem brisa por baixo da porta e se instalar devagarinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha chegado. Esses ritmos, só descobri aos poucos, Mesmo o cheiro de hortelã e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam espinhos, mas não feriam. Perguntei nome, o homem disse, eu não esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quando sentia saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim. Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia unicamente ansiedade, taquicardias, aflição, unhas roídas. Não era bom. Eu não conseguia trabalhar, ir ao cinema, ler ou afundar em qualquer outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava, eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra. Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.

Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora, E forçava os olhos pelos cantos para ver se encontrava pelo menos o reflexo de suas escamas de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou a fumaça de suas narinas, cujas cores mudavam conforme seu humor. Que era quase sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no esforço de percebê-lo, dia após dia, enquanto flores e frutas apodreciam nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas esvoaçavam em volta delas, agourentas. Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era o ter. Atento somente à minha dor, que apodrecia também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Eles não compreenderiam, ninguém compreenderia. Eu não compreendia, naqueles dias - você compreende?

Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito. Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que fosse. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repentes tão vazias sem ele.

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas com serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, com fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pantanal de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.

Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo cresça? Pergunto - porque não estou certo - coisas talvez um tanto primárias, como : um dragão vem e parte para que você aprenda a dor de não o ter, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para, quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia voltar?

Não, não é assim. Isso não é verdade.

Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena. Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. O aplauso seria insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso, igual ao direito - incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos - como eu inventava uma beleza de artifícios para espera-lo e prende-lo para sempre junto a mim.

Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é conflito, nunca a harmonia.

Quando volta a pensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imagina-lo voando com suas grandes asas douradas. Solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil, avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo - tão banal e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas aflições de ser feliz. As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir.

Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe. E esse nada incluiria o amor e Deus, e também os dragões e todo o resto, visível ou invisível. Nada, nada disso existe.

Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia de mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontra-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo-sentada-aflita-e-com-frio nos joelhos do sereno-velho-eu-mesmo:

- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.

Não, isso também não é verdade.

28.1.07

Precisa-se

Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar. P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilarecerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.

Clarice Lispector
She Wants Revenge - Red Flags And Long Nights

You can occupy my every sigh,
You can rent a space inside my mind
At least until the price becomes too high

13.1.07

Odeio este texto!

Eu tenho, você tem e eu duvido que aquele cara ajoelhado na frente do santo ou aquela mulher descalça numa ciranda espírita não tenham: ódio. E eu não sou só isso, eu não sou assim o tempo todo, eu não me baseio nisso. Mas, sim, eu odeio, e como. E a cada dia eu odeio mais conscientemente, a cada ano eu odeio mais especificamente e a cada noção da vida eu odeio mais verdadeiramente. Eu odeio que encostem o cotovelo, a bunda ou uma cerveja molhada em mim enquanto eu tento encontrar um espaço para dançar. Eu odeio que encostem em mim, odeio a pele de um desconhecido indesejado. Odeio homens com camisetinhas justas e colares. Odeio garotas de nariz empinado em suas calças que de tão apertadas fedem corrimento. Odeio meninas ensebadas que mexem demais no cabelo e olham para os lados com vergonha da própria existência. Odeio homens que olham para bundas como se admirassem uma carne pendurada no açougue e odeio mais ainda quando fazem bico e aquele sim com a cabeça, tipo "concordo com o mundo que ela é muito gostosa". E se ele fizer aquela chupada pra dentro do tipo "hmmmmm delícia" já é algo que ultrapassa os limites do meu ódio. Bater o dedinho do pé na quina, futebol pelo rádio, pessoas felizes demais, bocejos, mania de batuques (sim, foi para você), cigarro enquanto eu tô comendo (ou a qualquer hora), mau atendimento em restaurante (ou em qualquer lugar) e pessoas que não sabem chupar laranja ou tomar sopa sem sonoridades.

Odeio quem ignora a necessidade do desodorante, do retoque na raiz preta e da hora de parar com a comida. Odeio que faça sol se preciso de uma desculpa para não sair de casa. Odeio chuva se tenho roupas novas de verão. Odeio amigas que fazem sexo anal e me contam e eu passo o resto da vida sentindo um cheiro ruim quando encontro com elas. Flanelinhas, patricinhas, nominhos carinhosos para o namoradinho e frases carinhosas para o namoradinho no diminutivo. Odeio não ter um filho da puta nesta terra que sirva para meu namorado. Odeio mau hálito e mais ainda o fato de que justamente as pessoas podres são aquelas que falam mais baixo e nos obrigam a ter que chegar perto. Eu odeio machismo, submissão e mais do que tudo isso ter que ser forte o tempo todo e não ter um ombro másculo para chorar até minha última gota desamparada.

Eu odeio com toda a força do meu ódio o telemarketing e que me chamem de "senhora Tatiana" duzentas vezes por minuto. Eu odeio quando ligo no banco para saber o quanto estou negativa e a puta computadorizada me oferece algum superproduto premiado. (Eu estou negativa porra! Como vou investir? E meu nome é Tatianeeeeeeee ­ odeio meu nome mas é meu). Odeio todas as meninas bonitas do ginásio que já tinham peitos e bundas naquela época e hoje provavelmente devem estar caídas e usadas. Odeio o professor Nicola que me mandou calar a boca porque era um lixo de professor mas queria aparecer. Odeio muito mais do que telemarketing que empurrem a minha cabeça para fazer sexo oral: a chupetinha comandada! Vai abaixar a cabeça da sua mãe, seu filho da puta! E vê se aprende logo que não precisa enfiar a língua lá no fundo e fazer aquela cara de nojo, lambe o clitóris e mostre que você sabe mais do que quem foi o campeão do Brasileirão de 89. Odeio homossexuais enrustidos que usam a desculpa para não pegar uma mulher "ah, eu só pego de modelo pra cima". Odeio homens.

Toques de celular personalizados, tatuagem tribal e a nova moda das atrizes-modelos-manequins de tatuar as inicias do namorado da semana. Odeio bolsas Louis Vuitton, elas são feias e caras e quem usa é a típica lânguida que eu odeio, de rosto fino, cabelo fino e cérebro fino do fino shopping Iguatemi. Odeio bunda muito grande porque bunda muito grande é coisa de pobre. Odeio minha bunda ser pequena e eu ser pobre. Odeio todas as bandas de rock que se parecem, as músicas de negro que se parecem e as meninas da Faria Lima que se parecem. Odeio ter vontade de fazer cocô logo depois que eu tomei banho. Odeio o fim do sexo com aquela lambuzeira toda, odeio o meio do sexo porque minha cabeça quase sempre está em outro lugar e eu quase sempre finjo orgasmo. Odeio quando amo o sexo e o filho da puta some e eu passo mais um tempão para gostar de sexo de novo.

Odeio pessoas muito oleosas, muito peludas, muito suadas e acima de tudo meninas que cheiram a lavandas e gostam de adesivos de ursinho. Odeio as pessoas que eu amo muito, tipo minha mãe. Odeio que me mandem falar mais baixo e odeio que falem alto. Odeio que me olhem e que não me vejam. Odeio pentelho na minha garganta. Odeio comerciais com crianças vestidas de branco correndo no campo com flores amarelas, aquele japonezinho que faz cocô e aperta o tirador de fedor do banheiro e odeio muito, mas muito, mas muito mesmo, as lojas Marabrás. Odeio bijuteria dourada mais do que qualquer telemarketing ou chupadinha comandada. Odeio brilho em vestidos... agora, cascata de neon em formatura está acima dos meus poderes em odiar.

Odeio quem comemora porque passou numa faculdade que meu primo de 8 anos passaria e quem diz "peguei a mina". "Pega no meu pau, muleque!" Odeio bolsa de couro sintético combinando com o sapato de couro sintético (se as fivelas combinarem eu posso enfartar a qualquer momento). Odeio quem comemora o aniversário no rodízio de pizza do Viena e quem não pode perder o novo filme do Ben Affleck. Odeio numa proporção assustadora o Outback do Shopping Eldorado. (Se você vai num restaurante de shopping vagabundo com um nome industrializado sem charme desses e ainda acha divertido escorregar na gordura do chão não leia meus textos, por favor.)

Odeio os Estados Unidos mas odeio muito mais o fato de a gente ter sangue europeu mas ficar imitando esses estúpidos, que também têm sangue europeu mas são estúpidos por herança criada. Odeio a frase "eu vou no super, comprar umas cervas para o churras". Odeio cariocas que se acham superiores só por causa da praia mas vêm ganhar dinheiro aqui. Odeio cariocas que se acham fodas porque já saíram com alguma atriz da Globo e todos já saíram. Odeio a vontade que eu sinto de rebolar quando escuto aquela imbecil da Britney Spears, odeio ter chorado no Titanic e odeio assistir Celebrity Profile pra saber o que a Pamela Anderson faz além de ter dor nas costas (porque não deve ser fácil carregar duas jacas diariamente). Mas eu assisto.

Odeio quem passa o dia no shopping com a família, churrascaria com aquele desfile de bichinhos mortos, principalmente porque você está lá tranqüilamente comendo e vem alguém com um espeto (que é grosseiramente imposto ao seu lado), te espirra sangue, fala um nome idiota e você nunca sabe exatamente de que parte se trata.

Odeio homem que arrota aquele assoprinho que precede a explosão do chopp, sabe? Odeio com cada célula do meu corpo os "moke-up" de sobremesa em lojas de doces e alguns restaurantes. Odeio quem casa virgem, odeio quem chega em casa depois de uns malhos no carro e enfia o dedo no meio das pernas porque tava louca para dar mas "ele ia me achar muito fácil". Mas eu também odeio mulher que sai dando pra meio mundo e perde o mistério. Sei lá, essa coisa toda de dar vai ser sempre uma dúvida. Odeio dúvidas.

Odeio meninas caçadoras de homens ricos mas odeio sair com um cara que está tentando começar um relacionamento e ter que rachar a conta, seria mais simpático me deixar pagar a conta toda. Rachar é péssimo. Odeio aquele filme da loira e da morena do David Lynch, odeio as pessoas que não entendem que Felicidade veio antes de Beleza Americana e odeio quem odeia o Woody Allen.

Dividir banheiro, pêlo alheio em sabonete, acordar cedo e meninas adolescentes peruas com voz de pato. Odeio gordinhas que dizem "é que eu tenho a estrutura óssea larga" e dá-lhe brigadeiro em frente à televisão. Odeio aquele velho filho da puta me olhando na mesa ao lado, com três crianças penduradas no pescoço e uma mulher com culote comendo abacaxi para ajudar na digestão do javali. Odeio a típica família e suas árvores de Natal cheias de rancor, e os doces das tias cheias de rancor, e as crianças lindas correndo querendo que o priminho morra porque ganhou mais brinquedos. Odeio o tapinha dos homens e o beijinho em falso das mulheres. Prefiro virar a cara, prefiro cuspir, prefiro odiar, quando eu era criança sonhava todas as noites que arrancava os olhos de todo mundo e só eu podia enxergar o quanto era feio eu ser como sou.

Tati Bernardi

7.1.07

Iggy Pop & Kate Pierson - Candy

3.1.07

O abacateiro

Quero conseguir ecoar por todo o sempre a última tarde de novembro
Propagar em todos os meus dias cinzas a alegria finda
A nesga dourada de Sol adentrando seu quarto
O gosto da felicidade
Enquanto Billie Holiday tocava rouca na sua vitrola
E você lia pra mim altivo mais uma vez aquele soneto da Florbela
Me entreguei sem reservas dentro da mágica do seu universo

Me libertei de qualquer culpa, agarrando seu improvável gosto terno.
Quedando apenas a felicidade roubada.
O Rio alijado na colina tão distante de nossas vidas
nos resguardou do burburinho da cidade, da vida mundana e seus senões.
Você me embalou com sua magia, sua arte efervescente que te brilha os olhos.

Os nossos trabalhavam,
enquanto gozávamos os prazeres de um amor profano.
Foragida em seu olhar hipnótico
Em sua alcova, fui vítima.

Nos tivemos em outra dimensão
E eu ainda desejo as suas garras.
Quis me despir de mim, ser outra qualquer
Sem identidade, procurei o refúgio ideal
A paixão, o abacateiro
O vermelho-sangue do meu útero vivo no chão
A entrega nua
Nossas vidas pulsando
Mundos correndo paralelos.

Guardamos em relicário a intimidade colecionada em antanho
Mas você ainda é meu presente clandestino

Pensou tê-la atraiçoado com luxúria
Mas transgrediu o quê, no entanto?
Qual foi o nosso pecado capital,
se só louvamos o melhor da tarde quente?

Podamos o segredo das nossas seivas mais doces
Mas fomos abençoadas por Ele.

Carta do espaço sideral para não ser enviada a Angie

Caio Fernando Abreu

Vem, que eu quero te mostrar o papel cheio de rosas nas paredes do meu novo quarto, no último andar, de onde se pode ver pela pequena janela a torre de uma igreja. Quero te conduzir pela mão pelas escadas dos quatro andares com uma vela roxa iluminando o caminho para te mostrar as plumas roubadas no vaso de cerâmica, até abrir a janela para que entre o vento frio e sempre um pouco sujo desta cidade.

Vem, para subirmos no telhado e, lá do alto, nosso olhar consiga ultrapassar a torre da igreja para encontrar os horizontes que nunca se vêem, nesta cidade onde estamos presos e livres, soltos e amarrados.

Quero controlar nervoso o relógio, mil vezes por minuto, antes de ouvir o ranger dos teus sapatos amarelos sobre a madeira dos degraus e então levantar brusco para abrir a porta, construindo no rosto um ar natural e vagamente ocupado, como se tivesse sido interrompido em meio a qualquer coisa não muito importante, mas que você me sentisse um pouco distante e tivesse pressa em me chamar outra vez para perto, para baixo ou para cima, não sei, e então você ensaiasse um gesto feito um toque para chegar mais perto, apenas para chegar mais perto, um pouco mais perto de mim.

Então quero que você venha para deitar comigo no meu quarto novo, para ver minha paisagem além da janela, que agora é outra, quero inaugurar meu novo estar-dentro-de-mim ao teu lado, aqui, sob este teto curvo e quebrado, entre estas paredes cobertas de guirlandas de rosas desbotadas.

Vem para que eu possa acender incenso do Nepal, velas da Suécia na beirada da janela, fechar charos de haxixe marroquino, abrir armários, mostrar fotografias, contar dos meus muitos ou poucos passados, futuros, possíveis ou presentes impossíveis. Dos meus muitos ou nenhuns eus.
Vem para que eu possa recuperar sorrisos, pintar teu olho escuro com kol, salpicar tua cara com purpurina dourada, rezar, gritar, cantar, fazer qualquer coisa, desde que você venha, para que meu coração não permaneça esse poço frio sem lua refletida.

Porque nada mais sou além de chamar você agora, porque não tenho medo e não estou sozinho, porque não, porque sim, vem e me leva outra vez para aquele país distante onde as coisas eram tão reais e um pouco assustadoras dentro da sua ameaça constante, mas onde existe um verde imaginado, encantado, perdido. Vem, então, e me leva de volta para o lado de lá do oceano de onde viemos os dois.
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Livro Ovelhas Negras
Conto Luxo e purpurina.

23.12.06

I Need You Tonight - INXS

I need you tonight, cause I'm not sleeping...

17.12.06

A Ilha

Foi mais uma noite mal dormida. Há muito tempo dormia sem sono, inquieta, a escuridão a ameaçava. O peso da solidão, mais evidente à noite, chacoalhava sua mente, roubando o conforto da cama, o amparo da introspecção, que costumava ser seu único refúgio quando tudo começou. Não suportava mais a inércia dos objetos do quarto, a paz atestada nas pequenas coisas, o silêncio ensurdecedor se torcendo diante de seus pensamentos cada vez mais desamparados.

Enfim, cinco horas. Saltou da cama aliviada, tomou o café, comeu os restos do jantar e o mais rápido que pôde, já estava na areia, andando a passos largos. O vento revoava o vestido e os cabelos crespos desgrenhados, presos na tiara de couro. Era teimosamente bonita, sem vaidades, embora, agora, fosse uma beleza ressecada, abatida. Há quanto tempo não se olhava no espelho?

Há muito havia se desligado de si, vivia alheia a sua própria existência, sem vontades.
Subiu o difícil caminho de pedras, que levava ao ponto onde se podia ter a melhor visão do mar.

Era o que fazia todas as manhãs, até o sol chegar ao pico. Sentava-se e esperava, paciente, com o olhar distante e o pensamento já perdido. Na verdade não tinha esperanças de que o marido realmente voltasse. Mas, ainda assim, todos os dias cumpria esse ritual. Ás vezes mais doído, quando avistava ao longe um marido que não o seu, e testemunhava a alegria que tantas vezes já havia provado, de receber novamente o seu homem, que chegava depois da pesca de semanas, meses. Que ia sem saber se voltava, deixando o vazio, a esperança. E trazendo a maior alegria do mundo quando chegava.

Mas o marido não ia voltar. Há muito tempo havia partido, e agora não podia mais esperar. Relutava por aceitar o fato, tão difícil era abrir mão da esperança, dos dias vividos antecipadamente e aceitar a estranheza do infeliz abstrato. Estava entregue, com dor maior a cada dia.

E era tão sozinha. Não tinha mais ninguém que realmente amasse dentre as poucas pessoas daquela ilha, de somente algumas famílias, isoladas. Os dois viviam juntos há tanto tempo, fechados na existência um do outro, como todos os casais da ilha. Não haviam tido filhos, mas foram marido e mulher perfeitos. Ele fora um bom marido. Embora não fosse carinhoso, às vezes, com remorso por alguma rispidez ou por alguma alegria repentina tentasse realmente ser amável. Mas só tateava nessas gentilezas, pois não faziam parte de sua natureza. Era homem quieto, sério, severo, de passado sofrido, o que era para eles, louvável característica de um homem respeitável.

Assim, partia dele o silêncio e a impessoalidade que imperavam na casa e nela, conseqüentemente. Era calada, cordata, sem exigir quase nada do marido e da vida. O fato de ele ser distante nunca chegou a ser para ela uma situação. Sequer tinha qualquer imagem de um outro tipo de vida que ambicionasse. Orgulhava-se da vida estável e digna que haviam construído. A resignação era tão forte que não havia tédio. Viviam os dias de forma igual, numa realidade plana e feliz que se passava como uma corrente ininterrupta repleta de tarefas e obrigações. Como deveria ser. Limitados por aquela pequena ilha, viviam sob constante ameaça e dependência direta da sua natureza, tão viva e exuberante. Ela era a personagem principal da vida de todos, a provedora, mas também a que impunha os maiores limites.

O tempo passavademoradamente, estavam alheios ao mundo, à evolução de um modo geral. A luta pela sobrevivência era a única importância que imperava. E bastava. Viviam a vida que Deus quis”. Os homens ali eram crus, modestos, de uma simplicidade coerente ao exílio do mundo, secos, lutadores, assim como ela. Pertencia àquela ilha, àquela casa, ao ciclo irremediável da natureza. Esse era seu papel.

Aos poucos tentava renunciar ao pensamento do marido e viver partindo de si própria agora, sem o coração dolorido por um dia ao menos. Mas lhe custava adaptar-se a essa nova realidade. Não falava com pessoa alguma sobre ele, e estas tampouco se empenhavam em ajudá-la. Para eles, vivia um problema freqüente, ela era uma a mais, pouco para motivar alguma compaixão significativa naquela gente.

Vivia devagar, a seu modo. Os dias eram todos infinitos espaços de tempo a serem preenchidos como quisesse, com tarefas domésticas a maior parte do dia e uma ou outra distração, como costurar e jogar cartas com as vizinhas. Mas tudo parecia pesadamente igual, os dias cheios de obrigações que, aos poucos, foram se tornando absolutamente dispensáveis. Não podia ser útil só para ela mesma. Sentia-se cada vez mais sem função, à medida que aos poucos deixava de pensar tanto no marido. A sua figura vinha às vezes, em sobressalto, lhe cortando o coração. Mas estes pensamentos foram se espaçando e, a cada dia, sentia-se um pouco mais disposta. A tristeza foi aos poucos deixando seus olhos. Estes tinham de repente um certo viço, uma vivacidade inédita.

Tomada pelo choque da nova condição, foi perdendo aos poucos a antiga visão da vida que levava e da vida em si. A falta do marido a abortou do mundo, de suas bases, da lógica de tudo. O olhar firme, seguro do marido lhe parecia agora tão míope. Nunca a seu lado, amparada por sua segurança, permitiria ver-se tomada por tantas vontades. E se por acaso isso acontecesse, nunca, jamais conseguiria fazê-lo.

E assim, realmente foi mudando. Falava muito, dava gargalhadas. Passara a dormir melhor e em pouco tempo dormia muito, freqüentemente se levantava já com o sol alto. Aos poucos, também deixara de subir as pedras todos os dias. A casa, não mais cheirava a ocre, a seu fumo. Tinha agora um cheiro de frutas, de flores, de liberdade. Escutava música alta durante o dia, cantava enquanto cozinhava ou limpava a casa. Mas também foi gradualmente deixando de se ocupar dessas coisas como regras, limpava e cozinhava sem qualquer regularidade. Tomava demorados banhos de mar, fazia fogueiras à noite na beira da praia e conversava até a madrugada com os pescadores. Certamente, isso tudo criava grande alarde entre os habitantes da ilha. Sobre ela, eram todos os boatos, dizia-se que havia perdido completamente a razão com a recente perda do marido. Mas era a mais popular porque era a mais temida, a mais bonita, a mais invejada.

Deliciava-se com a alegria plástica da vida. Alegria que antes lhe parecia tão extravagante. Sentia agora uma estranha liberdade, sabia realmente que podia viver por si mesma. Era completamente tomada por uma grande e ininterrupta leveza, uma alegria pesadamente óbvia. Sentia que havia incorporado uma lucidez que não lhe cabia.

Em alguma parte sentia-se injustiçada, por essa nova pessoa que, de repente, havia se tornado. Negando tudo que sempre considerou, traindo tão profundamente suas raízes. Mas sabia que não estaria sendo franca consigo mesma se não aceitasse sua nova condição, recém-nascida do mundo. Sufocava-lhe a imagem da mulher submissa, compreensiva, útil que fora, e como isso agora lhe figurava uma agressividade consigo mesma. Sabia que no fundo estava grávida desse renascimento há muito tempo, mas faltara-lhe até então uma ruptura, um algo grave que a obrigasse sair dela mesma. Vivia feliz como nunca antes havia sido, a ilha lhe parecia demasiadamente pequena.

Um dia, porém, das pedras, avistou o barco do marido. Estremeceu, seu corpo inteiro palpitava. Não podia assimilar a figura daquele homem, o seu homem. Sua chegada surpreendente após tanto tempo, a violava, era tão incongruente que por um longo momento ficou imobilizada, atônita. Enquanto ele aos poucos ancorava seu velho barco, como sempre fazia, sentia em si lampejos da velha mulher que fora, tomada por um contentamento independente dela mesma. Mas acalmou-se logo em seguida, pois o que realmente lhe saltava no peito não era amor por aquele homem, mas compaixão. Uma piedade franca, porém totalmente fraterna. E em seguida, deu-lhe as costas.

(Laís Alcantara/ outubro de 2000)
Erasure Revisited - A Little Respect

A little sth to make sweeter...

11.12.06

Transformações (Uma fábula)


Feito, febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais certo, que todo as os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de alguma forma se mais ficaria. Mais que sensação, densa certeza viscosa impedindo qualquer movimento em direção à luz. E além da certeza, a premonição de um futuro onde não haveria o menor esboço de uma espécie qualquer não sabia se de esperança, fé, alegria, mas certamente qualquer coisas assim.Eram dias parados, aqueles. Por mais que se movimentasse em gestos cotidianos - acordar, comer, caminhar, dormir -, dentro dele algo permanecia imóvel. Como se seu corpo fosse apenas a moldura do desenho de um rosto apoiado sobre uma das mãos olhos fixos na distância. Ausentou-se, diriam ao vê-lo, se o vissem. E não seria verdade. Nesses dias, estava presente como nunca, tão pleno e perto que estava dentro de que chamaria - tivesse palavras, mas não as tinha ou não queria tê-las - vaga e precisamente de ; A Grande Falta.Era translúcida e gelada. Tivesse olhos, seriam certamente verdes, com remotas pupilas. À beira da praia certa vez encontrara um caco de garrafa tão burilado pelas ondas, areias e ventos que cintilavam o sol, pequena jóia vadia. Apertou-o entre os dedos, sentindo um frio anestésico que o impedia de perceber as gostas de sangue brotando mornas da palma da mão. Era assim A grande Falta. Pudessem vê-lo, pudesse ver-se, veriam também o sangue, ele e os outros. Acontece que tornava-se invisível nesses dias. Olhando-se ao espelho, sabia de imediato que estava dentro Dela. No vidro, além dele mesmo, localizava apenas um claro reflexo "avermelhado".Ela estava tão dentro dele quanto ele dentro Dela. Intrincados, a ponto de um tornar-se ao mesmo tempo fundo e superfície do outro. Amenizavam-se às vezes no decorrer do cair da noite surpreendê-lo nítido, passado a limpo, passado a ferro. Então sorria, dava telefonemas, cantava ou ia ao cinema, mas em outras vezes, adensava-se feito céu cada vez mais escuro, turvo agitado subindo do fundo, vidro bafejado. Sem dormir, fosforescia entre os lençóis ouvindo os ruídos da madrugada chegarem como abafados por uma grossa camada de algodão. Dissipava-se ou concentrava-se na manhã seguinte, mas apenas uma fluida e mansa continuação sem solavancos.Seu maior medo era o destemor que sentia. Íntegro, sem mágoas nem carências ou expectativas. Inteiro, sem memória nem fantasias. Mesmo o não-medo sequer sentia, pois não-dar-certo era o natural das coisas serem, imodificáveis, irredutíveis a qualquer tipo de esforço. Fosse íntimo das águas ou dos ares, teria quem sabe par6ametros para compreender esse quieto deslizar de peixe, ave. Criatura da terra, seu temor era quem sabe perder o apoio dos pés. E criatura do fogo. A Grande Falta crepitava em chamas dentro dele.

Sua invisibilidade no entanto não o invisibilizava: encadernava-o meticulosa em um determinado corpo e uma voz particular e uns gestos habituais e alguns trejeitos e pessoas que, aparentemente, eram ele mesmo. Por isso não é verdade que não o veriam. Veriam e viam, sim, aquela casca reproduzindo com perfeição o externo dele. Tão perfeito que nem ao menos provocava suspeitas aumentando as pausas entre as palavras, demorando o olhar, relentando o passo daquele falso corpo. Atrás da casca, porém, o cristal incandescia. Debaixo da terra, fogo- fátuo soterrado tão profundamente que a pele nem reluzia.Alguma coisa que jamais teria, e tão consciente estava dessa para sempre aus6encia que, por paradoxal que pareça, era completo nesse estado de carência plena. Isso acontecia apenas quando dentro Dela, pois ao desembarcar, em vez de sorrir ou fazer coisas, freqüentemente limitava-se a chorar penoso como se apenas a dor fosse capaz de devolvê-lo ao estágio anterior. A dor desconsolada e inconsolável, em soluços que o sacudia cada vez mais fortemente , a cada um deles partindo-se a casca, quebramdo-se a moldura, rachando-se o vidro, apagando-se o fogo.Como uma espécie de felicidade, esse desembaraçar-se de uma também felicidade. (.....), chafurdava em emoções; tinha desejos violentos, pequenas gulas, urgências perigosas, enternecimentos melados, ódios virulentos, tesões insaciáveis. Ouvia canções lamurientas, bebia para despertar fantasias distraídos, relia ou escrevi cartas apaixonadas, trasbordantes em rosas e abismos. Exausto, então, afogava-se num sono por vezes sem sonhos, por vezes - quando o ensaio geral das emoções artificialmente provocadas(mas que um dia, em outro plano, aquele da terra onde, supunha, gostava de pisar, aconteceriam realmente) não era superfície - povoado com répteis frios, a tentar enlaçá-lo com tentáculos pegajosos e "castanhos" olhos de pupilas verticais.Não saberia dizer com certeza como nem quando aconteceu. Mas um dia - um certo dia, um dia qualquer, um dia banal - deu-se conta que. Não, realmente não saberia dizer ao menos do que se dera-se conta. Mas foi assim.[...]Foi um dia movimentado aquele. Sua casca partia-se e refazia-se, entardecer sombrio e meio-dia cegante intercalados. Fumou demais, sem terminar nenhum cigarro. Bebeu muitos cafés, deixando restos no fundo das xícaras. Exaltou-se , ausentou-se . no intervalo da ausência, distraia-se em chamá-la também, entre susto e fascínio, de A Grande Indiferença, ou A Grande Partida, ou A Grande , ou A, ou. Na tentativa ou esperança, quem saberia, de conseguindo nomeá-la conseguir também controlá-la.Não conseguiu. Desimportou-se com aquilo. Tomado a intervalos pelo anônimo, atravessou a tarde, varou a noite, entrou madrugada adentro para encontrar a manhã seguinte, e outra tarde, e outra noite ainda, e nova madrugada, e assim por diante. Durante anos. Até as têmporas ficarem grisalhas...

Caio Fernando de Abreu
The Cure - Boys Don't Cry


"I try to laugh about it
Cover it all up with lies
I try to
Laugh about it
Hiding the tears in my eyes
'cause boys don't cry
Boys don't cry"