Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra... mas desde o princípio alguma coisa - fados, astros, sinas, quem saberá? - conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois... para nao sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, se querer justifica-los - ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem?

17.12.06

A Ilha

Foi mais uma noite mal dormida. Há muito tempo dormia sem sono, inquieta, a escuridão a ameaçava. O peso da solidão, mais evidente à noite, chacoalhava sua mente, roubando o conforto da cama, o amparo da introspecção, que costumava ser seu único refúgio quando tudo começou. Não suportava mais a inércia dos objetos do quarto, a paz atestada nas pequenas coisas, o silêncio ensurdecedor se torcendo diante de seus pensamentos cada vez mais desamparados.

Enfim, cinco horas. Saltou da cama aliviada, tomou o café, comeu os restos do jantar e o mais rápido que pôde, já estava na areia, andando a passos largos. O vento revoava o vestido e os cabelos crespos desgrenhados, presos na tiara de couro. Era teimosamente bonita, sem vaidades, embora, agora, fosse uma beleza ressecada, abatida. Há quanto tempo não se olhava no espelho?

Há muito havia se desligado de si, vivia alheia a sua própria existência, sem vontades.
Subiu o difícil caminho de pedras, que levava ao ponto onde se podia ter a melhor visão do mar.

Era o que fazia todas as manhãs, até o sol chegar ao pico. Sentava-se e esperava, paciente, com o olhar distante e o pensamento já perdido. Na verdade não tinha esperanças de que o marido realmente voltasse. Mas, ainda assim, todos os dias cumpria esse ritual. Ás vezes mais doído, quando avistava ao longe um marido que não o seu, e testemunhava a alegria que tantas vezes já havia provado, de receber novamente o seu homem, que chegava depois da pesca de semanas, meses. Que ia sem saber se voltava, deixando o vazio, a esperança. E trazendo a maior alegria do mundo quando chegava.

Mas o marido não ia voltar. Há muito tempo havia partido, e agora não podia mais esperar. Relutava por aceitar o fato, tão difícil era abrir mão da esperança, dos dias vividos antecipadamente e aceitar a estranheza do infeliz abstrato. Estava entregue, com dor maior a cada dia.

E era tão sozinha. Não tinha mais ninguém que realmente amasse dentre as poucas pessoas daquela ilha, de somente algumas famílias, isoladas. Os dois viviam juntos há tanto tempo, fechados na existência um do outro, como todos os casais da ilha. Não haviam tido filhos, mas foram marido e mulher perfeitos. Ele fora um bom marido. Embora não fosse carinhoso, às vezes, com remorso por alguma rispidez ou por alguma alegria repentina tentasse realmente ser amável. Mas só tateava nessas gentilezas, pois não faziam parte de sua natureza. Era homem quieto, sério, severo, de passado sofrido, o que era para eles, louvável característica de um homem respeitável.

Assim, partia dele o silêncio e a impessoalidade que imperavam na casa e nela, conseqüentemente. Era calada, cordata, sem exigir quase nada do marido e da vida. O fato de ele ser distante nunca chegou a ser para ela uma situação. Sequer tinha qualquer imagem de um outro tipo de vida que ambicionasse. Orgulhava-se da vida estável e digna que haviam construído. A resignação era tão forte que não havia tédio. Viviam os dias de forma igual, numa realidade plana e feliz que se passava como uma corrente ininterrupta repleta de tarefas e obrigações. Como deveria ser. Limitados por aquela pequena ilha, viviam sob constante ameaça e dependência direta da sua natureza, tão viva e exuberante. Ela era a personagem principal da vida de todos, a provedora, mas também a que impunha os maiores limites.

O tempo passavademoradamente, estavam alheios ao mundo, à evolução de um modo geral. A luta pela sobrevivência era a única importância que imperava. E bastava. Viviam a vida que Deus quis”. Os homens ali eram crus, modestos, de uma simplicidade coerente ao exílio do mundo, secos, lutadores, assim como ela. Pertencia àquela ilha, àquela casa, ao ciclo irremediável da natureza. Esse era seu papel.

Aos poucos tentava renunciar ao pensamento do marido e viver partindo de si própria agora, sem o coração dolorido por um dia ao menos. Mas lhe custava adaptar-se a essa nova realidade. Não falava com pessoa alguma sobre ele, e estas tampouco se empenhavam em ajudá-la. Para eles, vivia um problema freqüente, ela era uma a mais, pouco para motivar alguma compaixão significativa naquela gente.

Vivia devagar, a seu modo. Os dias eram todos infinitos espaços de tempo a serem preenchidos como quisesse, com tarefas domésticas a maior parte do dia e uma ou outra distração, como costurar e jogar cartas com as vizinhas. Mas tudo parecia pesadamente igual, os dias cheios de obrigações que, aos poucos, foram se tornando absolutamente dispensáveis. Não podia ser útil só para ela mesma. Sentia-se cada vez mais sem função, à medida que aos poucos deixava de pensar tanto no marido. A sua figura vinha às vezes, em sobressalto, lhe cortando o coração. Mas estes pensamentos foram se espaçando e, a cada dia, sentia-se um pouco mais disposta. A tristeza foi aos poucos deixando seus olhos. Estes tinham de repente um certo viço, uma vivacidade inédita.

Tomada pelo choque da nova condição, foi perdendo aos poucos a antiga visão da vida que levava e da vida em si. A falta do marido a abortou do mundo, de suas bases, da lógica de tudo. O olhar firme, seguro do marido lhe parecia agora tão míope. Nunca a seu lado, amparada por sua segurança, permitiria ver-se tomada por tantas vontades. E se por acaso isso acontecesse, nunca, jamais conseguiria fazê-lo.

E assim, realmente foi mudando. Falava muito, dava gargalhadas. Passara a dormir melhor e em pouco tempo dormia muito, freqüentemente se levantava já com o sol alto. Aos poucos, também deixara de subir as pedras todos os dias. A casa, não mais cheirava a ocre, a seu fumo. Tinha agora um cheiro de frutas, de flores, de liberdade. Escutava música alta durante o dia, cantava enquanto cozinhava ou limpava a casa. Mas também foi gradualmente deixando de se ocupar dessas coisas como regras, limpava e cozinhava sem qualquer regularidade. Tomava demorados banhos de mar, fazia fogueiras à noite na beira da praia e conversava até a madrugada com os pescadores. Certamente, isso tudo criava grande alarde entre os habitantes da ilha. Sobre ela, eram todos os boatos, dizia-se que havia perdido completamente a razão com a recente perda do marido. Mas era a mais popular porque era a mais temida, a mais bonita, a mais invejada.

Deliciava-se com a alegria plástica da vida. Alegria que antes lhe parecia tão extravagante. Sentia agora uma estranha liberdade, sabia realmente que podia viver por si mesma. Era completamente tomada por uma grande e ininterrupta leveza, uma alegria pesadamente óbvia. Sentia que havia incorporado uma lucidez que não lhe cabia.

Em alguma parte sentia-se injustiçada, por essa nova pessoa que, de repente, havia se tornado. Negando tudo que sempre considerou, traindo tão profundamente suas raízes. Mas sabia que não estaria sendo franca consigo mesma se não aceitasse sua nova condição, recém-nascida do mundo. Sufocava-lhe a imagem da mulher submissa, compreensiva, útil que fora, e como isso agora lhe figurava uma agressividade consigo mesma. Sabia que no fundo estava grávida desse renascimento há muito tempo, mas faltara-lhe até então uma ruptura, um algo grave que a obrigasse sair dela mesma. Vivia feliz como nunca antes havia sido, a ilha lhe parecia demasiadamente pequena.

Um dia, porém, das pedras, avistou o barco do marido. Estremeceu, seu corpo inteiro palpitava. Não podia assimilar a figura daquele homem, o seu homem. Sua chegada surpreendente após tanto tempo, a violava, era tão incongruente que por um longo momento ficou imobilizada, atônita. Enquanto ele aos poucos ancorava seu velho barco, como sempre fazia, sentia em si lampejos da velha mulher que fora, tomada por um contentamento independente dela mesma. Mas acalmou-se logo em seguida, pois o que realmente lhe saltava no peito não era amor por aquele homem, mas compaixão. Uma piedade franca, porém totalmente fraterna. E em seguida, deu-lhe as costas.

(Laís Alcantara/ outubro de 2000)

Um comentário:

Anônimo disse...

I need somebody too...Mesmo assim insônia é um termo distante em minha vida...rs
Quero ser convidado para o lançamento de seus textos.. Pense nisso! ;)
Besos chica guapa!