Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra... mas desde o princípio alguma coisa - fados, astros, sinas, quem saberá? - conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois... para nao sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, se querer justifica-los - ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem?

23.12.06

I Need You Tonight - INXS

I need you tonight, cause I'm not sleeping...

17.12.06

A Ilha

Foi mais uma noite mal dormida. Há muito tempo dormia sem sono, inquieta, a escuridão a ameaçava. O peso da solidão, mais evidente à noite, chacoalhava sua mente, roubando o conforto da cama, o amparo da introspecção, que costumava ser seu único refúgio quando tudo começou. Não suportava mais a inércia dos objetos do quarto, a paz atestada nas pequenas coisas, o silêncio ensurdecedor se torcendo diante de seus pensamentos cada vez mais desamparados.

Enfim, cinco horas. Saltou da cama aliviada, tomou o café, comeu os restos do jantar e o mais rápido que pôde, já estava na areia, andando a passos largos. O vento revoava o vestido e os cabelos crespos desgrenhados, presos na tiara de couro. Era teimosamente bonita, sem vaidades, embora, agora, fosse uma beleza ressecada, abatida. Há quanto tempo não se olhava no espelho?

Há muito havia se desligado de si, vivia alheia a sua própria existência, sem vontades.
Subiu o difícil caminho de pedras, que levava ao ponto onde se podia ter a melhor visão do mar.

Era o que fazia todas as manhãs, até o sol chegar ao pico. Sentava-se e esperava, paciente, com o olhar distante e o pensamento já perdido. Na verdade não tinha esperanças de que o marido realmente voltasse. Mas, ainda assim, todos os dias cumpria esse ritual. Ás vezes mais doído, quando avistava ao longe um marido que não o seu, e testemunhava a alegria que tantas vezes já havia provado, de receber novamente o seu homem, que chegava depois da pesca de semanas, meses. Que ia sem saber se voltava, deixando o vazio, a esperança. E trazendo a maior alegria do mundo quando chegava.

Mas o marido não ia voltar. Há muito tempo havia partido, e agora não podia mais esperar. Relutava por aceitar o fato, tão difícil era abrir mão da esperança, dos dias vividos antecipadamente e aceitar a estranheza do infeliz abstrato. Estava entregue, com dor maior a cada dia.

E era tão sozinha. Não tinha mais ninguém que realmente amasse dentre as poucas pessoas daquela ilha, de somente algumas famílias, isoladas. Os dois viviam juntos há tanto tempo, fechados na existência um do outro, como todos os casais da ilha. Não haviam tido filhos, mas foram marido e mulher perfeitos. Ele fora um bom marido. Embora não fosse carinhoso, às vezes, com remorso por alguma rispidez ou por alguma alegria repentina tentasse realmente ser amável. Mas só tateava nessas gentilezas, pois não faziam parte de sua natureza. Era homem quieto, sério, severo, de passado sofrido, o que era para eles, louvável característica de um homem respeitável.

Assim, partia dele o silêncio e a impessoalidade que imperavam na casa e nela, conseqüentemente. Era calada, cordata, sem exigir quase nada do marido e da vida. O fato de ele ser distante nunca chegou a ser para ela uma situação. Sequer tinha qualquer imagem de um outro tipo de vida que ambicionasse. Orgulhava-se da vida estável e digna que haviam construído. A resignação era tão forte que não havia tédio. Viviam os dias de forma igual, numa realidade plana e feliz que se passava como uma corrente ininterrupta repleta de tarefas e obrigações. Como deveria ser. Limitados por aquela pequena ilha, viviam sob constante ameaça e dependência direta da sua natureza, tão viva e exuberante. Ela era a personagem principal da vida de todos, a provedora, mas também a que impunha os maiores limites.

O tempo passavademoradamente, estavam alheios ao mundo, à evolução de um modo geral. A luta pela sobrevivência era a única importância que imperava. E bastava. Viviam a vida que Deus quis”. Os homens ali eram crus, modestos, de uma simplicidade coerente ao exílio do mundo, secos, lutadores, assim como ela. Pertencia àquela ilha, àquela casa, ao ciclo irremediável da natureza. Esse era seu papel.

Aos poucos tentava renunciar ao pensamento do marido e viver partindo de si própria agora, sem o coração dolorido por um dia ao menos. Mas lhe custava adaptar-se a essa nova realidade. Não falava com pessoa alguma sobre ele, e estas tampouco se empenhavam em ajudá-la. Para eles, vivia um problema freqüente, ela era uma a mais, pouco para motivar alguma compaixão significativa naquela gente.

Vivia devagar, a seu modo. Os dias eram todos infinitos espaços de tempo a serem preenchidos como quisesse, com tarefas domésticas a maior parte do dia e uma ou outra distração, como costurar e jogar cartas com as vizinhas. Mas tudo parecia pesadamente igual, os dias cheios de obrigações que, aos poucos, foram se tornando absolutamente dispensáveis. Não podia ser útil só para ela mesma. Sentia-se cada vez mais sem função, à medida que aos poucos deixava de pensar tanto no marido. A sua figura vinha às vezes, em sobressalto, lhe cortando o coração. Mas estes pensamentos foram se espaçando e, a cada dia, sentia-se um pouco mais disposta. A tristeza foi aos poucos deixando seus olhos. Estes tinham de repente um certo viço, uma vivacidade inédita.

Tomada pelo choque da nova condição, foi perdendo aos poucos a antiga visão da vida que levava e da vida em si. A falta do marido a abortou do mundo, de suas bases, da lógica de tudo. O olhar firme, seguro do marido lhe parecia agora tão míope. Nunca a seu lado, amparada por sua segurança, permitiria ver-se tomada por tantas vontades. E se por acaso isso acontecesse, nunca, jamais conseguiria fazê-lo.

E assim, realmente foi mudando. Falava muito, dava gargalhadas. Passara a dormir melhor e em pouco tempo dormia muito, freqüentemente se levantava já com o sol alto. Aos poucos, também deixara de subir as pedras todos os dias. A casa, não mais cheirava a ocre, a seu fumo. Tinha agora um cheiro de frutas, de flores, de liberdade. Escutava música alta durante o dia, cantava enquanto cozinhava ou limpava a casa. Mas também foi gradualmente deixando de se ocupar dessas coisas como regras, limpava e cozinhava sem qualquer regularidade. Tomava demorados banhos de mar, fazia fogueiras à noite na beira da praia e conversava até a madrugada com os pescadores. Certamente, isso tudo criava grande alarde entre os habitantes da ilha. Sobre ela, eram todos os boatos, dizia-se que havia perdido completamente a razão com a recente perda do marido. Mas era a mais popular porque era a mais temida, a mais bonita, a mais invejada.

Deliciava-se com a alegria plástica da vida. Alegria que antes lhe parecia tão extravagante. Sentia agora uma estranha liberdade, sabia realmente que podia viver por si mesma. Era completamente tomada por uma grande e ininterrupta leveza, uma alegria pesadamente óbvia. Sentia que havia incorporado uma lucidez que não lhe cabia.

Em alguma parte sentia-se injustiçada, por essa nova pessoa que, de repente, havia se tornado. Negando tudo que sempre considerou, traindo tão profundamente suas raízes. Mas sabia que não estaria sendo franca consigo mesma se não aceitasse sua nova condição, recém-nascida do mundo. Sufocava-lhe a imagem da mulher submissa, compreensiva, útil que fora, e como isso agora lhe figurava uma agressividade consigo mesma. Sabia que no fundo estava grávida desse renascimento há muito tempo, mas faltara-lhe até então uma ruptura, um algo grave que a obrigasse sair dela mesma. Vivia feliz como nunca antes havia sido, a ilha lhe parecia demasiadamente pequena.

Um dia, porém, das pedras, avistou o barco do marido. Estremeceu, seu corpo inteiro palpitava. Não podia assimilar a figura daquele homem, o seu homem. Sua chegada surpreendente após tanto tempo, a violava, era tão incongruente que por um longo momento ficou imobilizada, atônita. Enquanto ele aos poucos ancorava seu velho barco, como sempre fazia, sentia em si lampejos da velha mulher que fora, tomada por um contentamento independente dela mesma. Mas acalmou-se logo em seguida, pois o que realmente lhe saltava no peito não era amor por aquele homem, mas compaixão. Uma piedade franca, porém totalmente fraterna. E em seguida, deu-lhe as costas.

(Laís Alcantara/ outubro de 2000)
Erasure Revisited - A Little Respect

A little sth to make sweeter...

11.12.06

Transformações (Uma fábula)


Feito, febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais certo, que todo as os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de alguma forma se mais ficaria. Mais que sensação, densa certeza viscosa impedindo qualquer movimento em direção à luz. E além da certeza, a premonição de um futuro onde não haveria o menor esboço de uma espécie qualquer não sabia se de esperança, fé, alegria, mas certamente qualquer coisas assim.Eram dias parados, aqueles. Por mais que se movimentasse em gestos cotidianos - acordar, comer, caminhar, dormir -, dentro dele algo permanecia imóvel. Como se seu corpo fosse apenas a moldura do desenho de um rosto apoiado sobre uma das mãos olhos fixos na distância. Ausentou-se, diriam ao vê-lo, se o vissem. E não seria verdade. Nesses dias, estava presente como nunca, tão pleno e perto que estava dentro de que chamaria - tivesse palavras, mas não as tinha ou não queria tê-las - vaga e precisamente de ; A Grande Falta.Era translúcida e gelada. Tivesse olhos, seriam certamente verdes, com remotas pupilas. À beira da praia certa vez encontrara um caco de garrafa tão burilado pelas ondas, areias e ventos que cintilavam o sol, pequena jóia vadia. Apertou-o entre os dedos, sentindo um frio anestésico que o impedia de perceber as gostas de sangue brotando mornas da palma da mão. Era assim A grande Falta. Pudessem vê-lo, pudesse ver-se, veriam também o sangue, ele e os outros. Acontece que tornava-se invisível nesses dias. Olhando-se ao espelho, sabia de imediato que estava dentro Dela. No vidro, além dele mesmo, localizava apenas um claro reflexo "avermelhado".Ela estava tão dentro dele quanto ele dentro Dela. Intrincados, a ponto de um tornar-se ao mesmo tempo fundo e superfície do outro. Amenizavam-se às vezes no decorrer do cair da noite surpreendê-lo nítido, passado a limpo, passado a ferro. Então sorria, dava telefonemas, cantava ou ia ao cinema, mas em outras vezes, adensava-se feito céu cada vez mais escuro, turvo agitado subindo do fundo, vidro bafejado. Sem dormir, fosforescia entre os lençóis ouvindo os ruídos da madrugada chegarem como abafados por uma grossa camada de algodão. Dissipava-se ou concentrava-se na manhã seguinte, mas apenas uma fluida e mansa continuação sem solavancos.Seu maior medo era o destemor que sentia. Íntegro, sem mágoas nem carências ou expectativas. Inteiro, sem memória nem fantasias. Mesmo o não-medo sequer sentia, pois não-dar-certo era o natural das coisas serem, imodificáveis, irredutíveis a qualquer tipo de esforço. Fosse íntimo das águas ou dos ares, teria quem sabe par6ametros para compreender esse quieto deslizar de peixe, ave. Criatura da terra, seu temor era quem sabe perder o apoio dos pés. E criatura do fogo. A Grande Falta crepitava em chamas dentro dele.

Sua invisibilidade no entanto não o invisibilizava: encadernava-o meticulosa em um determinado corpo e uma voz particular e uns gestos habituais e alguns trejeitos e pessoas que, aparentemente, eram ele mesmo. Por isso não é verdade que não o veriam. Veriam e viam, sim, aquela casca reproduzindo com perfeição o externo dele. Tão perfeito que nem ao menos provocava suspeitas aumentando as pausas entre as palavras, demorando o olhar, relentando o passo daquele falso corpo. Atrás da casca, porém, o cristal incandescia. Debaixo da terra, fogo- fátuo soterrado tão profundamente que a pele nem reluzia.Alguma coisa que jamais teria, e tão consciente estava dessa para sempre aus6encia que, por paradoxal que pareça, era completo nesse estado de carência plena. Isso acontecia apenas quando dentro Dela, pois ao desembarcar, em vez de sorrir ou fazer coisas, freqüentemente limitava-se a chorar penoso como se apenas a dor fosse capaz de devolvê-lo ao estágio anterior. A dor desconsolada e inconsolável, em soluços que o sacudia cada vez mais fortemente , a cada um deles partindo-se a casca, quebramdo-se a moldura, rachando-se o vidro, apagando-se o fogo.Como uma espécie de felicidade, esse desembaraçar-se de uma também felicidade. (.....), chafurdava em emoções; tinha desejos violentos, pequenas gulas, urgências perigosas, enternecimentos melados, ódios virulentos, tesões insaciáveis. Ouvia canções lamurientas, bebia para despertar fantasias distraídos, relia ou escrevi cartas apaixonadas, trasbordantes em rosas e abismos. Exausto, então, afogava-se num sono por vezes sem sonhos, por vezes - quando o ensaio geral das emoções artificialmente provocadas(mas que um dia, em outro plano, aquele da terra onde, supunha, gostava de pisar, aconteceriam realmente) não era superfície - povoado com répteis frios, a tentar enlaçá-lo com tentáculos pegajosos e "castanhos" olhos de pupilas verticais.Não saberia dizer com certeza como nem quando aconteceu. Mas um dia - um certo dia, um dia qualquer, um dia banal - deu-se conta que. Não, realmente não saberia dizer ao menos do que se dera-se conta. Mas foi assim.[...]Foi um dia movimentado aquele. Sua casca partia-se e refazia-se, entardecer sombrio e meio-dia cegante intercalados. Fumou demais, sem terminar nenhum cigarro. Bebeu muitos cafés, deixando restos no fundo das xícaras. Exaltou-se , ausentou-se . no intervalo da ausência, distraia-se em chamá-la também, entre susto e fascínio, de A Grande Indiferença, ou A Grande Partida, ou A Grande , ou A, ou. Na tentativa ou esperança, quem saberia, de conseguindo nomeá-la conseguir também controlá-la.Não conseguiu. Desimportou-se com aquilo. Tomado a intervalos pelo anônimo, atravessou a tarde, varou a noite, entrou madrugada adentro para encontrar a manhã seguinte, e outra tarde, e outra noite ainda, e nova madrugada, e assim por diante. Durante anos. Até as têmporas ficarem grisalhas...

Caio Fernando de Abreu
The Cure - Boys Don't Cry


"I try to laugh about it
Cover it all up with lies
I try to
Laugh about it
Hiding the tears in my eyes
'cause boys don't cry
Boys don't cry"

10.12.06

A Serenata

(Adélia Prado)

noite de lua pálida e gerânios ele viria
com boca e mãos incríveistocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desesperoe só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo o que não for natal como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia, os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem, de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Carta Anônima

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você.

Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam? Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar.

Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas.

Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vezemquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.

Caio Fernando Abreu

3.12.06

Placebo - Peeping Tom

"Careful not to fall
Have to climb your wall
'Cause you're the one who makes me feel much taller than youare
I'm just a peeping tom
On my own for far too long
Problems with the blues nothing left to loose

I'm weightless
I'm bare
I'm faithless
I'm scared"

*Cenas do filme Un año sin amor (2004)
Dirección: Anahi Berneri

Narra la vida de un joven escritor enfermo de sida, que pelea día a día contra su enfermedad. En esa batalla se introduce en prácticas sadomasoquistas, para a través del goce del dolor encontrar la fuerza para seguir viviendo y tratar de encontrar un amor verdadero.

29.11.06

O amor acaba

Por Paulo Mendes Campos


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Nada Passa


Por Clarah Averbuck


Eu tô bem. Eu tô bem, era assim mesmo que tinha que ser, era inevitável. Engraçado, porque no começo eu era inevitável. E agora o fim é que virou inevitável. Não, não é engraçado, não é nem um pouco engraçado, e eu tenho pesadelos todas as noites com a porteira de uma pizzaria seduzindo aquele que foi minha alma gêmea desde sempre e para sempre sei lá eu como, porque certamente não foi do jeito que eu fiz. É minha culpa? É minha culpa. É o destino, esse filho-da-puta. É minha culpa.

Não é culpa de ninguém. Alguém tem uma morfina aí? Obrigada. Alguém tem fogo, uma taça de vinho? Obrigada. Estava tudo horrível, era assim que tinha que ser. Ninguém se escutava, todo mundo só escutava a si mesmo. Ecos deturpados de algo que foi um grande amor se dissolvendo em uma nuvem de incompreensão, desconfiança e hostilidade.

Dói, dói, dói como abrir o peito e arrancar um órgão vivo sem anestesia. Paralisada. Observando tudo, morrendo de dor, mas sem poder fazer nada. Chega uma hora em que lutar só serve para levar à loucura. E na loucura eu já cheguei, obrigada. Estou é tentando sair dela. Muitas coisas na cabeça, muitos grandes projetos, eu estou bem, eu estou BEM.

Vou me concentrar em outras coisas, vou realizar tudo aquilo que a relação que me consumia não permitiu. E vou deitar sozinha na cama à noite e ver que agora durmo em um deserto. E, depois de uma semana, vou desistir de dormir na cama e dormir no sofá, em companhia da televisão, toda torta, suando no couro vermelho, mas não vai adiantar, eu vou dormir mal, acordar mal e ver a cama intocada e me sentir ainda mais sozinha. E a casa, aquela casa toda, o nosso lar, o nosso templo construído pouco a pouco, peça a peça, e vai ficar tudo ali, morto, e o corredor, o apartamento que nós escolhemos juntos, será como uma zona fantasma na casa fantasma, e eu percorrerei o corredor fantasma tocando as paredes e sentindo cheiros que não estão mais lá com lágrimas que nunca conhecerão as minhas faces escondidas nos olhos sem escorrer.

E todos os nossos planos, porque um casal sempre tem planos, ficarão lá sem crescer na Terra do Nunca pra sempre. Um casal separado não tem mais nada a dizer, mas quer dizer tudo pra tentar arrumar tudo de errado. Um casal separado não quer mais se ver, mas quando se vê sente que a chama morta ainda arde e dói. E nunca vai parar de arder. Um casal separado descobre que, de uma maneira errada, será eterno. Eterno no fracasso, mas eterno. E tudo aquilo que um dia foi a sua vida se dissolverá no passado e você nem lembrará direito como foi, só lembrará na cabeça, não no peito. O peito vai estar ocupado com outras coisas. Isso se você tiver a sorte de ainda ter um coração. Porque às vezes a dor é tão grande que o coração pára e a gente fica amarga pra sempre e deixa de acreditar em tudo.

Nada passa, diria uma amiga minha. Nada passa e a gente vira um amontoado de todas essas coisas. Nada passa.

Ainda bem. Senão não valeria a pena.

28.11.06

#1 Crush - Garbage

Extremos da Paixão

"Não, meu bem, não adianta bancar o distante, lá vem o amor nos dilacerar de novo..." Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro(a)- mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo(a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque se poderia ter, já que está vivo(a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.

Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou-e-sem-ele-eu-nao-vivo-então-quero-morrer-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: "Se você não me amar, eu matarei o presidente". E deu um tiro em Ronald Regan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George - se não houver algo de publicitário nisso - é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo.
No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira:compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe, berrando de pavor para o mundo insano,e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó.O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya, ilusão, passatempo. E exigimos o terno do perecível, loucos.

Depois, pensei também em Adèle Hugo, filha de Victor Hugo. A Adèle H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adèle apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolosem face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.Andei pensando em Adèle H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu.

Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.(in Pequenas Epifanias)

Caio Fernando Abreu
Pink Martini - Sympathique

27.11.06

Caleidoscópio



Rio de Janeiro, 08 de novembro de 2004

Caleidoscópio

O dia cinza parece sem moldura e sem eco. As pessoas rasas e sem gosto pertencem a outra raça. Vejo-as pelo caleidoscópio enquanto falam comigo. Enxergos as sombras e os contornos.

A jaula está convidativa: Entre. Quero me arrastar rugindo e arranhando o chão duro.

Porque hoje estou cega para o mundano, perambulo pelo plano das idéias. Ignoro a vivacidade que insiste em adentrar. Por dentro estou escura e oca. Mas sangro e jorro choro abrasivo. Por dentro tenho garras que querem digerir o gozo quente. Liberar o grito primitivo. Quero rasgar a carne crua e seus nervos.

A medida que abro a caixa de Pandora dou à luz às criaturas das trevas e tenho medo. As palavras malsãs e burburinhos me entorpecem na baia impessoal. Até o silêncio gélido do ar condicionado me transpassa em calafrio.

Estou só enquanto teço idílio tão distante. Arde pensar a felicidade e lembra-la é um parto doído de filho malquisto.

Então vivo na bolha invisível e os passantes andamem minha direção e não me vêem. Olham e não vêem.

É que estou verde, entorpecida, entoando a voz dos anjos e dos demônios. Joguei fora o relógio, perdi a noção do tempo. Estou congelada. Tenho medo do sono e não tenho coragem nem de dormir nem de morrer. Sou moça pós- moderna que tudo pode e tem, mas a vida vibrante me ofusca agora.

A mulher que é no fundo quer seguir a luz, depois que as nuvens negras deixarem o céu. Mas por enquanto é ostra gerando a pérola. Por ora ainda segura a barra da saia materna e bebe leite morno. Sabe que não serão necessárias eras para que amadureça e perca o medo de seguir sozinha. Mas hoje, obstinada, espera a metamorfose.

Então ela come o joio duro sem mastigar. Absorve tudo para apreender a alma coletiva da natureza. Ela que queria ser planta.

A escrita triste está nublando os seus sentidos e quase sucumbe. Entoa o cântico mortífero, mas que também é réquiem para a última chance.

Vai se agarrar à corda que insistem em jogar do lado de lá, para resgatá-la. Talvez por mera provocação. Talvez seja ela própria. Pensa então em se dar mais uma chance e viver na estranha terra dos homens mais uma temporada.
WELCOME to Mother Superiors


"People think it's all about misery and desperation...
and death and all that shite,
which is not to be ignored.
But what they forget is the pleasure of it.
Otherwise we wouldn't do it.
After all, we're not fucking stupid.
At least we're not that fucking stupid.
Take the best orgasm you've ever had...
multiply it by a thousand,
and you're still nowhere near it.
That beats any fucking cock
in the world. "

Adolescência - Ximenes Braga

Tenho horror à nostalgia. Se alguém começa uma frase com “no meu tempo”, é bom emendar com um comentário autopejorativo sobre o corte de cabelo que usava na época, senão nem ouço o resto. Uso logo o método infalível para não prestar atenção no que me é dito: cantarolo mentalmente “Poeira”, da Ivete Sangalo. Mas coerência não faz parte da longa lista de males que me afligem, então este é um texto nostálgico. Ando com nostalgia da angústia adolescente. No meu tempo, eu ficava deprimido. Aliás, todo mundo que eu conhecia ficava. Lia-se “O mito de Sísifo”, de Camus, e a “Náusea”, de Sartre. Ouvia-se Smiths. Assistia-se a “Trinta anos esta noite”, de Louis Malle. A maior parte dessas coisas, na verdade, nem era do nosso tempo, mas estava em voga nos anos 80. E ficávamos deprimidos pela falta de sentido da existência. Mas minha geração — pelo menos o microcosmo que conheço — passou pelo aniversário de 30 anos e se esqueceu de dar um tiro na cabeça, como titio Malle ensinara no filme.

Sobrevivemos por culpa de remédios tarja preta ou simplesmente por ficarmos de saco cheio de tanta inexorabilidade. E nos esquecemos de como era nobre ficar deprimido pela falta de sentido da existência. Tiro por mim. Hoje em dia, o que mais me deprime é a arrogância do casalzinho. Eu, que já prometi nunca mais sair da cama depois de ler um livro de Clarice Lispector, agora repito tais bravatas por causa da Rosinha Garotinho. Quanta decadência! A angústia adolescente era muito melhor, mais saudável e digna que as angústias da vida adulta. Tem gente que aos 17 anos entrava em depressão porque ouvia This Mortal Coil, e aos 34 vira ameba porque o pagamento atrasa e precisa pedir dinheiro emprestado — uma melancolia sem qualquer allure.

Ou seja, deprê de adolescente é sublime, deprê de adulto é cafona e pueril. Vejamos outros exemplos:
adolescente quer fugir dos pais e tem Freud para ampará-lo; adulto quer fugir do chefe, e assim ameaça abrir uma pousada na Região dos Lagos ou lê manuais de auto-ajuda sobre como subir na vida. Quando chega em casa, o adolescente se tranca no quarto para bater a cabeça na parede; o adulto tem que lidar com a infiltração na cozinha e com o aquecedor a gás quebrado. Ou seja, na adolescência, o algoz do seu ânimo é J.D. Salinger; na vida adulta, é o senhorio. Você vira gente grande quando o cotidiano o assola mais que a vida. Sem falar em todas as mudanças físicas. Aos 15, os hormônios tomam conta do rapaz e ele se angustia pela desproporção quantitativa entre o sexo que fantasia e o que pratica. Aos 30 e poucos, o homem continua só pensando em sexo, mas sua angústia é prever o prazo de validade dos hormônios antes de precisar recorrer à química. Aos 15, as moças entristecem por amores não correspondidos; aos 30, elas têm ataques de insegurança porque não sabem escrever mensagem de texto no celular. Para piorar tudo, até a lei da gravidade contribui para que você se torne mais superficial depois dos 30. Quando a sua barriga se torna um drama maior que seu próprio umbigo, não há mais dúvidas, você é um adulto. O passo seguinte é acreditar que era bobo na adolescência e, agora sim, está maduro e sábio. Pura enganação.

26.11.06

Placebo - Without You I'm Nothing


Tick tock
Tick tock
Tick tick
Tick Tick
Tick tock

Alice despertando outra vez...





Por quase dois anos o meu impulso criativo esteve acossado. Nunca mais
a inspiração suplicante, urgente. Nunca mais o alívio na fuga para as
palavras, mudas.

Em seu lugar vivia uma alegria doce e despretensiosa, na
superfície. Para escrever carecia de certa melancolia, de desespero ou de
solidão. Então, leve de espírito, abandonei por tanto tempo o secreto refúgio
das letras. Esquecida de mim, vivia resignada no mundo dos outros, como
num teatro.

Mas de repente surge a voz que entende a minha língua secreta. Você
aparece sutil e subverte todo o silêncio. Eu, que precisava de introspecção
funda pra escrever, de inadequação, de vazio, hoje tenho um vale de
pensamentos alados, que fogem ao meu controle. As palavras dançam na minha
frente em bando, me embotam, tão vivas. São tantas, pululam todo o
tempo. E, surpresa: estou feliz.

Vislumbro o regresso do velho eu, em nova versão.

Por tanto tempo guardava o tédio sufocado. Uma felicidade fosca
ou uma tristeza reprimida. E agora toda a vida interna, a vida real, vem
à tona, num susto.

Dia após dia o nó cego na garganta ia crescendo,quase me enforcando. Na tranqüilidade simulada vivia a iminência de um abalo sísmico fatal. Feliz porque sim. Porque tudo parecia ótimo. Porque tinha tudo que precisava. Sim, vou muito bem obrigada.

Mas um dia, talvez cedo, talvez tarde demais, você leu esse pedido
rouco de socorro e me sacudiu, tirando-me de um sono profundo.

Suas idéias tão contorcidas quanto as minhas. A tristeza e a sombra,
incompreendidas. Você e a sua solidão, tão andarilha quanto a minha, me acordaram subitamente.

Descem torrentes de lágrimas e o riso do fundo do meu estômago, tudo ao
mesmo tempo.

Novamente vida. Suspiro pela esperança. E pelo medo de enfim ter
encontrado.

O soluço que soa como um sino: a nova realidade é agora. É hoje, já,
ainda, neste momento. Ainda. Tic tac.

Alice acordando outra vez.

24.11.06

Barato Zen - Nelson Motta

Louco de fumo diante da tv
contemplo a tela iluminada e penso
na ânsia de criar, de ir adiante
que tanto me consome e angustia
e sinto que a vida não se faz
somente pela ação e movimento
enquanto me abrigo em meu silêncio
e deixo que a tv me hipnotize

Nesse momento tonto e inativo
nada é urgente, nada é necessário
além de aceitar serenamente
a hora de não ser
e de ser nada.

Não tendo mais
tempo nem saco
para tanto papo
o príncipe de saudades
do tempo em que era sapo.
Gosto tanto deste texto. Lido e relido à exaustão. Em tantos momentos tantos eus. Sempre leva-se um susto, há sempre um novo viés. É por mim tão disseminado que dá medo de banalizar., de virar clichê. Mas Clarice é clarice. Simples assim.

POR NÃO ESTAREM DISTRAÍDOS

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

(In A descoberta do Mundo)

23.11.06

Miss Kittin - Sinatra 2006

To be famous is so nice...

22.11.06

Placebo - Pierrot the Clown

Placebo - Pierrot the Clown

And if you`re ever around
In the city or the suburbs.. of this town
Make sure to come around
I'll be wallowing in sorrow
And wearing a frown
Like Pierrot the Clown

* Ainda sobre inadequação ao senso comum: entender e idolatrar Placebo.